Everyone is a Winner

Eu não sei o que estou fazendo aqui. Sem motivo. Sem vontade. Resolvi andar a esmo e agora estou perdido. Coloquei a coleira no cachorro, desci as escadas, ouvi um baque e tudo se apagou. Minha cabeça dói. Sinto o sangue escorrer por todo o lado esquerdo do meu crânio. Por dentro da orelha. Até o pescoço. A cicatriz lateja.
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Meus braços estão presos atrás da cadeira. Que por sinal é extremamente desconfortável. Que merda de licitação foi essa? Com certeza alguém tirou uma bela grana por fora para convencer a diretoria que essa seria a melhor opção de compra. O número de licenças por problemas na coluna deve ser enorme. Minhas pernas estão presas com silvertape.
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Vejo uma esbelta mulher sentada à minha frente. Fora ela, o galpão está vazio. Percebo apenas velhos cartazes dando as indicações de um trabalho que foi abandonado há muito tempo. Existe sujeira, um imenso vazio a minha volta e um cheiro pútrido no ar.
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A luz acesa no fundo da sala não para de piscar. Repetidamente. Sem ritmo. Deve ser um simples defeito de fabricação da lâmpada ou da fiação elétrica. Parece uma balada de quinta categoria. O constate ascender e apagar das luzes torna a face dessa desconhecida um pouco mais sombria.
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Taça de vinho vazia
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“Por que não fala comigo? Por que não me diz o que vai fazer? Por que tenta me aterrorizar?” Ela não responde. Finge que nem ouviu. Apenas me olha com um sorriso cínico, balança a taça de vinho na mão direita e coloca a pistola em cima da mesa. Às vezes, pega o revólver, destrava a arma e aponta em minha direção. Ao rosto, ao peito. Até em direção ao meu pau. E, em todas as vezes que isso acontece, meu coração acelera, o estômago revira e o suor gelado corre por minha espinha. Não sei se vou sair vivo dessa.
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Subjugado e imóvel, lembro de minha esposa. Recordo-me que não lhe disse o quanto a amava antes de dormir. Estava bravo por uma briga fútil que tivemos no dia anterior. Como fui imbecil! Imagino tudo que poderia ter feito para deixá-la mais feliz. De todos os sentimentos que deixei de demonstrar para lembrá-la o quanto era especial. Talvez agora seja tarde demais. Também lembro-me da minha mãe. Coitada. Percebo que vai ser ela quem mais vai sofrer. E mais uma vez me arrependo por ter sido um filho tão frio. Nunca declarei o quão importante ela foi pra mim. A visão da minha cachorra é a última que me vem aos olhos. O que será que aconteceu? Ela não esteve comigo por muito tempo, mas ficou claro que o amor entre nós foi incondicional. Os cães nunca mentem. Uma lágrima escorre pelo meu olho esquerdo. Não posso secá-la. Estou preso de uma forma que não consigo mexer meus membros nem por um mísero centímetro.
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“Onde está minha cachorra? O que você fez com ela?” Minha algoz apenas sorri. Levanta-se. Aponta a arma em minha direção. Dá um gole no vinho. “Não se preocupe, ela nem saiu do prédio. Não sou tão sádica assim, para maltratar um pobre animal tão puro. Quanto a você, infelizmente, já não há mais salvação!” Ela começa a rir. A gargalhar loucamente. Anda de um lado ao outro e resmunga consigo mesma palavras que não posso ouvir. Começo a rezar silenciosamente. Nunca fui religioso, mas agora um suposto Deus é a minha última salvação. Começo a tremer enquanto ela vem em minha direção.
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“Hoje, estou a fim de fazer uma experiência. E já te digo: você não vai sair vivo daqui! Não adianta gritar, implorar ou tentar me subornar. Nada nem ninguém poderá te ouvir ou socorrer. Gente egocêntrica, estúpida e sem empatia como você não merece salvação. Sempre tiveram tudo de mão beijada. Não conhecem a realidade do mundo ao seu redor. Presta atenção! Assim que você ficar de pau duro você vai morrer! Você entendeu?”
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Estou apavorado. Mas saber que o cão está a salvo alivia meu medo por um breve momento. Penso no que ela me disse e não consigo achar nenhuma resposta. “Mas que merda você está dizendo? Me solta, por favor! Pelo amor de Deus!”
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Em um movimento rápido, ela saca a arma e atira em minha direção. Sinto o ardor e a queimação no meu ombro direito. O sangue espirra. O impacto é forte e a dor domina meu corpo. “Ahhhhhrrrrrrggggggg! Caralho! Que porra foi essa? Por quê? Por quê você fez isso?” Começo a chorar como uma criança. Soluço. Grito. Rezo.
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Lábios com batão e cabelo ruivo sobre o rosto
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Ela vem em minha direção. Solta o cabelo. É ruivo, liso, espelhado até o meio das costas. Levanta o braço e me dá um tapa na cara com as costas da mão. “Seu merda! Não foi isso que eu perguntei. Pare de chorar como uma vadia! Recomponha-se! Você só vai morrer quando seu pau ficar duro! Você entendeu? Hein, puto?”
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Respiro fundo, engulo a seco e aceno com a cabeça. O sinal positivo a faz se afastar um pouco. Ela anda vagarosamente até o interruptor e faz algumas tentativas até a luz se estabilizar. Observo-a com atenção. Fungo mais um pouco para secar as lágrimas. Sua beleza é inacreditável. Usa uma calça de academia colada ao corpo e um top preto. Barriga seca. Bunda empinada. Rosto lindo. Olhos azuis, nariz fino e pequenas sardas nas bochechas. É apaixonante. Deve ser a assassina mais gostosa que já existiu.
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Ela pega o celular e coloca uma música. Every 1’s a Winner ecoa pelos alto-falantes. Em passos lentos, dança em minha direção de uma forma bastante sensual e com um sorriso perverso. Os movimentos são maravilhosos e em câmera lenta. Pena que vou morrer, senão poderia aproveitar isso de uma forma diferente.
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Tira o top e joga para longe. Vejo os seios quase saltando do sutiã. São maiores que imaginava. Mas não grandes o suficiente para tornarem-se exagerados. São simétricos ao corpo que os acompanha. Chega mais perto e continua a dançar. Olha-me fundo nos olhos. Se a situação não fosse tão atípica, diria que ela quer realmente me entreter.
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Abaixa pouco a pouco as calças. Está com uma calcinha preta fio dental. As nádegas saltam assim que o tecido desce. Perfeita. Com duas pintas do lado direito. Umas das bundas mais belas que já pude ver. Rebola no ritmo da música. De lado. De costas. Há belezas que vêm ao mundo apenas para nos atormentar. Apenas para brincar com a mente daqueles que as admiram. É realmente fenomenal.
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Arma sob as nádegas de uma mulher de calcinha
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Em passos lentos ela caminha em minha direção. Abaixa uma das alças do sutiã enquanto vai chegando mais perto. Sinto seu perfume. Doce. Delicado. Selvagem. “E ai? Como estamos?” Ela abaixo o tronco na direção do meu rosto e coloca os seios na minha cara. Macios. Mágicos. O tecido do sutiã roça o meu nariz. Em um gesto brusco, ela aperta o meu pau por cima das calças. “Nada ainda? Estou completamente decepcionada. Parece uma lesma morta!.” O medo me consome. Apesar do lindo show, não há nenhum clima para excitação.
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“Vou ter que ser mais efetiva!” Ela tira o sutiã e joga a peça longe. Toma mais um gole de vinho e me rouba um beijo molhado. Sinto o gosto da saliva e do álcool. Não posso mentir: é uma bela sensação. Espero que minha esposa possa me perdoar. Ela senta em meu colo. Desliza a vagina por cima de minha calça. Nada ainda. Nenhum resquício de tesão.
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Os mamilos estão cada vez mais próximos. Belos. Rosados. Incríveis. Ela aproxima o seio direito da minha face. “Lambe, desgraçado! Agora! Vamos! Quero ver se ao menos pra isso você serve!” Molho os lábios e dou um beijo em seu peito. Passo a língua delicadamente em volta. Abocanho com carinho. Com leves mordidas. Chupo com vontade. Ela dá um leve gemido. Perco-me nessa pequena amostra de inocência que um assassino jamais deveria exibir. Afasto meu rosto. A saliva estica entre minha boca e o delicado seio. Cena de filme. Mas não do filme que eu gostaria de atuar.
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“Uau!!! Parece que algo se moveu por aqui! Hunnnmmm!” Ela rebola mais um pouco em cima do meu colo e esboça um sorriso provocante. Levanta-se e novamente apalpa meu pênis e minhas bolas. “Ainda não é o ideal, mas pelo menos já me mostrou que você não é um frouxo pica murcha! Vamos ter que melhorar isso! Hahahahahaha!”
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Cristo! Entro em desespero. Não é possível. Por algumas vezes em minha vida brochei em situações normais e justo agora esse pau filho da puta quer mostrar o seu verdadeiro valor! Vou morrer! Começo a gemer e a balbuciar palavras sem sentido. “Cala a boca!” Assusto-me, silencio e fico completamente imóvel.
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Pernas no salto alto
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Ela continua a dançar. Passa os dedos nas alças da calcinha e vai abaixando-a vagarosamente. É impossível não olhar. Sorri. Faz gestos maliciosos e me olha no fundo dos olhos. Joga a calcinha para o ar. Vira-se de costas e abaixa completamente o tronco, fingindo tocar algo em seus sapatos e deixando as pernas e coxas carnudas completamente esticadas. Meu deus! O alongamento divino. É a vista do paraíso. Posso ver toda a vulva e os lábios rosados. O grelo e a magia de toda a cena. Magnífica. Uma das bocetas mais lindas de todos os tempos.
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Levanta-se novamente e se aproxima de mim. Abaixa-se na minha frente e começa a abrir meu cinto. Então, puxa minhas calças e rasga a cueca. “Não, não, não, não, não! Você é bicha, por acaso? Meia bomba não serve pra mim!” Por que, Deus , tenho de passar por isso? Ela se levanta bruscamente, vira-se e coloca bunda direto na minha cara. Esfrega com vontade a boceta nos meus lábios, nariz e queixo. Fabulosa. Molhada. Perfeita.
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“Chupa, seu merda! Com gosto. Com vontade!” Mesmo sabendo do incrível erro, atendo ao seu pedido. Coloco a língua para fora e começo a lamber tudo que alcanço. Ela posiciona o clitóris no modo certo para que possa agradá-la da melhor forma. Ela geme. Sinto a vagina encharcar. Adoro o gosto que a excita. Deliciosa. Sinto meu pau pulsar. A morte se aproxima. “Agora sim! Finalmente! Olha só que beleza! Vivo! Grosso! Duro como pedra!”
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Ela se levanta saltitante. Pega a arma em cima da mesa. Olha-me sorridente. Uma criança prestes a entrar na brincadeira. Posiciona-se ao meu lado. Coloca a arma sobre minha têmpora. Com a outra mão, segura meu pau com firmeza. Começa a mover. Para cima. Para baixo. Deliro. Amo. Para cima. Para baixo…. BUM!
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Era uma vez um brother

Se você acha que relacionamentos abusivos são causados apenas por homens violentos, aproveitadores e mentirosos, é preciso abrir um pouco mais sua cabeça, pois vou te contar a história de Felipe Arquer e Luana Villas Betis.

Felipe Arquer era mais um jovem de classe media/alta da metrópole paulistana. Havia cursado publicidade, morava em Perdizes e perdia horas e mais horas de sua vida jogando Pro Evolution Soccer no Playstation. Tinha um senso de humor calibrado e era digno de uma bela aparência. Possuía 1,80m, cabelos e olhos castanhos, tronco quadrado, e dono de um visual despojado. Provavelmente, um dos caras mais pegadores que já conheci. Sempre haviam mulheres no seu encalço ou algum esquema rolando por ai. Obviamente, nenhum desses casos era sério. Havia namorado apenas uma vez em sua vida, mas lembro-me que foi com uma garota estonteante. Os esportes em geral eram um grande hobbie, principalmente o futebol, sua maior paixão.

Luana Villas Betis, por sua vez, vinha de uma família mais humilde, teve sua formação toda em escola pública e pagou pelos próprios estudos superiores, trabalhando de dia e indo à faculdade a noite. Formou-se em Relações Públicas. Vivia na região da Pompeia, era descolada, comunicativa e tinha um humor diferente e sarcástico, que poucas mulheres possuíam. Sua altura era de 1,60m. Loira, magra, roqueira. Possuía algumas tatuagens espalhadas pelo corpo e um “quê” meio pin up. Uma bela garota. Características essas que chamavam bastante atenção e lhe rendiam grande admiração do público masculino.

Por alguma ironia do universo, os dois vieram a se conhecer quando estavam trabalhando na mesma agência de publicidade e marketing digital. Mais um desses empregos escravocratas que jovens estúpidos acreditam ser incríveis para trabalhar, pois podem usar havaianas e regatas durante o expediente e expor ao público sem qualquer remorso seus cabelos e barbas ridículos. Empregos quais ganham um salário de merda e são obrigados a fazer hora extra todos os dias e trabalhar aos finais de semana, enquanto são explorados por seus clientes e superiores, para depois, exaustos e sob uma pilha de nervos, se exibirem numa mesa de bar, expondo como sua vida profissional é magnifica, já que conseguem editar os vídeos da nova campanha num Apple de última geração.

Aos poucos os dois foram ganhando afinidade e passaram a frequentar as mesmas festas e bares quando descobriram que tinham alguns amigos em comum. Eu era um deles. Havia feito o colegial na mesma escola que Luana, mas nunca na mesma classe. Assim, nossa relação só viria a se estreitar depois que começamos a trabalhar juntos. Já Felipe, eu conhecia há anos, pois morávamos na mesma rua e eu frequentava o seu prédio toda semana. Éramos bons amigos. Jogávamos bola, vídeo game, saíamos ocasionalmente e ríamos de coisas sem sentido. Dessa forma, através de contatos cada vez mais frequentes com os dois, me encontrei em uma nova rotina semanal de bares, baladas e encontros em locais boêmios para extravasarmos a mente e aproveitar um pouco mais do que a juventude tinha a nos oferecer.

Rua Augusta por Douglas Pimentel

Um dos locais que fazíamos questão de estar sempre presentes era a famigerada Rua Augusta. Foram diversas noites perdidas beijando pessoas horríveis, usando drogas, arrumando brigas, batendo carros e chegando bêbado em casa. Lindas lembranças, incríveis ressacas e muitos arrependimentos.

Era claro desde o início que havia uma sintonia entre os dois, mas lembro-me que demorou algum tempo para que eles ficassem pela primeira vez. Apesar de todo o clima e momentos propícios para tal, o primeiro beijo entre os dois aconteceu muitos meses depois que a chama do amor já os havia entrelaçado.

O início, como sempre, foi lindo. Noites maravilhosas, amigos em comum e o prazer imensurável de uma nova paixão. E foi então que ocorreu o primeiro caso curioso dessa história. Depois de muitos meses que os dois começaram a ficar, saírem juntos, frequentar a casa um do outro e conviver com ambas as famílias, por algum motivo desconhecido Luana não queira assumir um namoro ou qualquer compromisso oficial. As razões não eram claras, mas ela carregava algum receio anterior, causado por antigas relações e por vontades atuais que não correspondiam àquele momento. De alguma forma, Felipe soube aceitar o caso muito bem e aguardou até que houvesse uma chance real para que tudo se concretizasse. Obviamente, esse fato rendeu várias piadas entre a galera, já que os pseudos namorados estavam sempre juntos, não saíam com ninguém mais e faziam questão de não manter um relacionamento aberto. Um casamento de mentira. O comprometimento invisível. Independentemente de quão próximos eles estavam, Arquer só conseguiu oficializar o namoro nove meses depois do primeiro beijo.

O primeiro fato que me deu sinais que havia algo estranho naquele relacionamento aconteceu por um motivo incrivelmente idiota. Em uma conversa em grupo entre eu, Felipe e outro camarada, através do Facebook, foi jogado ao ar que a grande maioria dos homens se masturbavam, mesmo após terem assumido um relacionamento estável. Alguns minutos depois, Luana me chamou inbox e começou a me perguntar como eu sabia que o namorado dela se masturbava agora que os dois estavam juntos. Porra! Como eu iria saber se o namorado dela se masturbava? E como ela sabia sobre o que estávamos conversando? Respondi que não fazia ideia se ele se masturbava ou não, mas, usando exemplos como o meu e de outros homens que conhecia, era realmente muito provável que ele também se masturbasse ocasionalmente. Teve início o inferno. Fui acusado, xingado e declarado mentiroso. Luana mandou mensagens até no Whatsapp de minha namorada, hoje noiva, para expor minhas declarações e também fazer com que eu brigasse com ela. Que filha da puta! Felipe ouviu as reclamações e a ferocidade de Luana por horas a fio, durante toda a tarde e noite. Em algum momento, as mensagens também chegaram por email, e era nítido, devido a forma como foram escritas e aos termos utilizados no texto, que não era Felipe que estava conversando comigo, mas sim Luana, através do endereço dele. No fim, mandei os dois para o inferno, pois tinha mais o que fazer da minha vida.

Spying Turquoise by JD Hancock

Não vejo problema nenhum em dividir suas senhas e liberar o aceso ao seu email, celular e redes sociais para a pessoa que você ama se essa for uma decisão consensual. Mas não aceito o fato de isso se tornar uma arma de espionagem para controlar seu companheiro e manipular as pessoas a sua volta.

Esse acontecimento recordou-me que Villas Betis uma vez me disse que obrigava seu ex-namorado a entrar no metro de cabeça baixa e manter aquela postura até sair da estação, pois assim ela garantiria que ele não olharia por um segundo sequer para qualquer outra mulher durante o trajeto. Que doentio! Mais estúpido ainda era o idiota aceitar essa condição. Não sei que tipo de poder ela tinha sobre seu ex-namorado, mas parecia que já havia começado a exercer esse tipo de dominação sobre Arquer também.

Lembro-me que no aniversário de Luana ela deu uma festa na ONG de um de nossos amigos, que cedeu o espaço e a ajudou a organizar a comemoração. Nesse dia, Felipe foi o lacaio de Luana durante todo o tempo, fazendo de tudo para montar o evento perfeito enquanto era destratado e humilhado em público. Podíamos ver com clareza os insultos e falta de paciência da aniversariante: “Vá buscar o gelo no Ceagesp, seu inútil!”, “Você é muito burro, não faz nada direito.”, “Pegue isto, leve aquilo, busque minha família agora!”, “Vai se foder!” Esses foram apenas alguns dos inúmeros insultos que Arquer foi obrigado a ouvir durante toda a noite perante os presentes. Recordo-me com clareza da sua cara de reprovação. Em alguns momentos parecia até desolado. De alguma forma, ele foi bastante paciente e acho que aguentou toda aquela encheção de saco sem revidar apenas porque era o aniversário dela ou porque sem perceber já estava se diminuindo perante uma relação que achava ser ideal. Vendo de fora, perguntava-me como alguém podia tratar tão mal uma pessoa que só estava ali para ajudar.

Foi engraçado que, com o passar do tempo, começaram a brigar cada vez mais em público e a forma como se tratavam nos momentos de tensão era grotesca. Xingavam-se sem qualquer tipo de barreira. Pareciam bêbados imundos insultando seu pior inimigo. Utilizavam palavões pesados e gestos inconcebíveis perante a boa família. Pais e avós ficariam horrorizados. Estar ao lado dos dois durante esses momentos era vergonhoso.

Por muitas vezes, quando Arquer se atrasava para algum compromisso, Luana  entrava em contato até com os amigos dele para saber sobre o seu paradeiro ou discutir os motivos da demora do seu namorado em retornar. Se toca! Isso não é problema deles!

Slidescreen by Johan Larsson

Uma vez, quando estava sem carro e havia ido de carona até a casa de um de seus amigos assistir a um jogo de futebol, Felipe recebeu mais de 20 ligações pressionando-o a voltar o mais rápido possível. De tanto ser infernizado, ele passou o telefone ao seu amigo, dono do veículo, para que Luana pudesse adverti-lo e obrigá-lo a voltar naquele momento, pois ela não poderia esperar o jogo terminar para encontrar seu amado. Obviamente, seu pedido foi ignorado. O que a deixou ainda mais puta e fez com que Felipe passasse por péssimos momentos quando voltou ao lar. Que cena ridícula. Tão ridícula que chega até a ser engraçada.

Enfim, não vou me alongar em todas as inúmeras historias nas quais Arquer foi destratado, manipulado ou teve suas vontades negadas, mas vou contar como foi a última vez que tive contato com ele. Numa de nossas conversas rotineiras de bar, Luana e Felipe tiveram a ideia de organizar um amigo/inimigo secreto entre nossa galera. Cada participante deveria se fantasiar de alguém do grupo, para deixar o evento ainda mais engraçado. Escolhemos o local, fizemos o sorteio, compramos as bebidas e quitutes e marcamos o dia. Parecia que seria uma jornada realmente divertida. Foi ai que os problemas começaram. Na data marcada, todos estavam presentes, menos Luana e Arquer. Independentemente das inúmeras mensagens e ligações, nenhuma satisfação foi dada por ambos. Haviam pessoas que tinham se fantasiado como os dois e comprado seus respectivos presentes para uma brincadeira que não daria mais certo. O evento estava marcado para às 14h, mas aguardamos o casal “somente” até às 18h30, pois alguns dos 08 idiotas que os esperavam tinham outros compromissos. Eles jamais foram, não deram qualquer satisfação e nunca mais falaram com nenhum de nós.

Após esse evento, Arquer nunca mais respondeu nenhuma mensagem de email, Whatsapp ou Facebook. Jamais atendeu a nenhuma de nossas ligações e nunca mais falou com nenhum de seus antigos amigos. Alguns deles o conheciam desde o primário. Haviam crescido juntos. Anos e anos jogados fora.

Eu também perdi a conta de quantas vezes fui ignorado. O motivo de tudo isso eu ainda não sei. Infelizmente, ele nunca teve a dignidade ou caráter de me contar o que aconteceu. Por mais ridículas, verdadeiras ou desastrosas que fossem as suas razões, poderia ao menos colocar as cartas na mesa e me dar uma chance de me retratar, se assim fosse preciso.

O pior de tudo é que algumas pessoas às vezes vêm me perguntar sobre ele e eu não tenho nenhuma resposta satisfatória a dar. Perguntam-me também porque Luana vive postando fotos e vídeos com suas amigas e Arquer está sempre sozinho. Eu não faço ideia.

Loneliness by Bert Kaufmann

Um dos poucos amigos que ainda possui algum tipo mínimo de contato com ele, disse-me que foi até a sua casa em seu último aniversário e ficou assustado por não encontrar ninguém. Não que isso seja uma novidade, mas ainda se espantam por vê-lo tão solitário.

Não posso provar, mas tenho quase certeza que Luana de alguma forma o convenceu que essa situação seria o melhor para ele. Se ele concorda ou não, não faz mais diferença. A vida é feita de escolhas e se alguém se sujeita a esse tipo de tratamento deve ter as suas próprias razões. O que me intriga é o fato de Luana continuar sua vida normalmente como se nada tivesse acontecido e seu companheiro ter escolhido um caminho vazio ao seu lado. Não é possível enxergar um ponto de equilíbrio nessa situação.

Por fim, parece-me um abuso psicológico que infelizmente ele não tem mais forças ou coragem para evitar. Talvez nem queira lutar contra isso ou tentar mudar essa situação. E nós, imbecis que foram deixados para trás, ainda nos preocupamos em saber se ele está realmente feliz.

É difícil entender os motivos que levam uma pessoa a aceitar esse tipo de comportamento, e ainda mais difícil fazê-la entender que essa não é de nenhuma forma uma relação saudável. Mas enquanto essa pessoa não conseguir enxergar o verdadeiro mal que isso vai lhe trazer, sempre estará recheada de culpa, medo e incapacidade diante da maioria das situações e provavelmente irá se diminuir e aceitar aquilo que seu companheiro estiver disposto a lhe dar.

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Obs.: Os personagens e eventos narrados neste texto são puramente ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Já fui feliz um dia

Já fui feliz um dia. Antes de vir pra cá. Antes de ser uma atração de entretenimento para sua espécie repugnante e destruidora. Antes de ser capturado, escravizado e torturado. Antes de ser obrigado a trabalhar por anos a fio sem qualquer tipo de recompensa. Comendo mal, estressado, triste. Apanhando por não fazer aquilo que demorei diversas cicatrizes para aprender. Antes de ver meus pais e amigos serem assassinados, capturados e levados para um destino pior que o meu. Antes de me arrancarem de meu lar e prenderem-me em uma jaula mal adaptada por toda a eternidade, vendo outros animais tão desolados quanto eu sofrerem dia após dia sem esperanças. Antes de ser aterrorizado pelo medo da morte ao ouvir os gritos e uivos de dor dos meus compatriotas. Antes de entender que nunca mais teria controle sob minha própria vida, que seria sempre a marionete e objeto de exposição aos olhos dos demônios. Antes de descobrir que vocês existiam.

Quando nasci, eu e meus 7 irmãos da mesma ninhada não tínhamos ideia de como era o mundo. A vida era recheada de descobertas e aventuras. Brincávamos a todo momento, mamãe nos amamentava com carinho e os familiares mais velhos estavam sempre cuidando de nós.

Meu pai era imponente. Sempre atento e pronto a nos ensinar sobre nossa história e o nosso lugar dentro da cadeia alimentar. Um lutador nato. O chefe mais justo e primoroso que conheci. Rigoroso quando necessário, mas um completo brincalhão nas horas vagas. Demos boas risadas juntos. Todos os meus irmãos queriam ser como ele. Eu não. Apesar de admirar muito meu pai, dava-me melhor com minha mãe. Por sua postura e dedicação, sempre disposta a nos mostrar a importância que tínhamos junto à natureza e a nos acolher assim que qualquer problema acontecia. Fosse uma briga familiar, um machucado inesperado ou para nos defender diante de algum predador. Uma caçadora impiedosa. Lembro-me de uma ocasião na qual meu pai tinha saído para um reconhecimento de área e minha mãe sozinha espantou cinco hienas com apenas um rugido. Aterrorizante. Pura valentia. Meu pai com certeza era o macho alfa, mas quando minha mãe ficava nervosa nem ele se atrevia a discutir com ela. Um grande exemplo.

Image by Alberto Ziveri

Assim que fui crescendo, minhas garras aumentaram e meu rugido ficou aos poucos mais feroz. As explorações pela floresta eram maiores e mais inovadoras. Caçava pequenos animais, pois ainda não tinha experiência nem força para fazer como minha mãe e minhas tias que buscavam cervos, zebras e outros antílopes. Ao longo do tempo, minhas habilidades melhoravam. Agilidade. Espreita. Tempo de reação. A rivalidade com meus irmãos era muito saudável e sempre nos ajudávamos, mesmo com as diversas personalidades envolvidas em cada descoberta. Quando tínhamos alguma briga desnecessária, minha mãe nos falava da importância de nos mantermos unidos, para colocar as cartas na mesa e resolver de imediato a situação. Era difícil opôr-se a ela. Primeiro, porque sempre tinha razão e, segundo, porque vê-la nervosa não era uma boa ideia.

Alguns parentes e outros animais já tinham me contado sobre os bípedes sanguinários, mas nunca tinha vivenciado a sua presença. Sabia o quanto eram cruéis e que deveríamos evitá-los a todo custo. Sabia que matavam por diversão. Para arrancar nossas peles, chifres, dentes. Na maioria das vezes nem se alimentavam de nossa carne, apenas largavam as carcaças ali, como lixo. Meus pais contavam que muitas espécies já não existiam mais por culpa deles e que logo, logo nós também seríamos uma delas.

O problema não era só a matança, eles também destruíam tudo que encontravam. Lagos, rios, florestas. Verdadeiros exterminadores. Aprendi a temê-los assim que comecei a entender as catástrofes que causavam, embora nunca tivesse tido a chance de encontra-los. Sua existência apenas pairava em minha imaginação.

A primeira vez que percebi sua presença foi quando resolvi disputar uma corrida com minha irmã mais velha. Acordamos que a chegada seria no conjunto de árvores em forma de “V” no topo do morro dos faisões. Em plena juventude, éramos rápidos como raios. Eu era mais veloz, mas ela entendia a topografia da montanha melhor que eu. Apesar de todo meu esforço, essa já era a sétima vez que perdia a corrida pra ela. Uma ótima competidora.

Image by Cristian Bortes

Assim que chegamos ao topo, vimos pela primeira vez a intervenção humana. Toda a floresta abaixo havia sido destruída. Queimada. As árvores colocadas abaixo. A fumaça ainda subia pelos focos de chama. O cheiro das cinzas era insuportável. Era uma área imensa. Tinha amigos e conhecidos que viviam por lá e provavelmente tiveram que deixar suas casas e procurar um novo lugar para viver. Foi uma visão horripilante. Senti muito medo. Finalmente entendi o poder que eles tinham e os motivos dos receios dos outros animais. Naquela época, pensei que podiam ser deuses. Ledo engano.

Já nessa época, tínhamos que mudar constantemente nosso local de moradia. Tanto pela falta de caça quanto pelo desmatamento da floresta. Era cada vez mais comum vermos nuvens negras subirem pelas clareiras, pássaros voando em fuga e explosões. Por mais que nos movêssemos, não conseguíamos escapar da intervenção dos bípedes. Tínhamos paz algumas vezes, mas nossa alcateia sempre sofria baixas inesperadas. Tios desaparecidos, irmãos que não voltavam das caçadas, avós mortos ou capturados. Percebia a preocupação cada vez mais evidente de meus pais, porém, até aquele momento, ainda não tínhamos encontrado nenhum deles em nosso caminho. Não tínhamos mais para onde fugir. Apesar do medo e dos parentes desparecidos, esses dias ainda conseguiam ser especiais. Foram minhas ultimas lembranças de uma vida feliz.

A última vez que vi a floresta foi aterrorizante. Fomos acordados por um cheiro fortíssimo de mata queimada. A temperatura subiu de forma vertiginosa. Não era possível entender como tudo aconteceu tão rápido. Meu pai alertou a todos e nos reunimos para a fuga. Decidimos procurar um local no qual não havia chamas, mas em um raio de 240º atrás de nós só era possível enxergar desgraças. Meus pais e tios se dividiam buscando inutilmente algum local onde não seríamos queimados. No fim, com todos juntos, corremos ao único lugar que não havia fumaça, caos e chamas. Era uma armadilha. Os demônios nos esperavam lá. Um grupo deles. Carregavam materiais nas mãos e nas costas que jamais havia visto, mas que descobri naquele momento que eram instrumentos de morte. O primeiro a cair foi meu tio, irmão mais velho de meu pai. Não percebeu a chegada do inimigo e foi atingido diretamente na cabeça por um cabo enorme com foices nas pontas. Fiquei desesperado. Meu pai atacou seu algoz, diretamente na jugular. Aquele com certeza nunca mais foi mesmo. O ataque, porém, foi inútil. De longe, meu pai foi alvejado. Não entendia como, mas diversas marcas de sangue em suas costas surgiram. Ele rugiu de dor e caiu imóvel. Olhos abertos, expressão sem alma. Fiquei apavorado e com ódio. Minha mãe postava-se a nossa frente. Eu e meus irmãos tentávamos escapar de seus golpes. Alguns deles conseguiram fugir e sumir ao longe no horizonte. Foi a última vez que os vi. Não pude nem me despedir. Alguns dos bípedes apontavam suas armas na direção dos fugitivos, mas não os acertaram. Eu e meu irmão mais novo estávamos ao lado de nossa mãe, procurando uma forma de escapar. Via um a um de minha família, cair, morrer e agonizar no chão. Cercaram-nos. Eram oito deles. Havia sobrado apenas minha mãe, eu e meu irmão mais novo. O mais baixo dos demônios tentou acertá-la com um pau. Minha mãe, rápida como um raio, desviou do golpe e atacou. Uma patada direta na face. Vi o sangue jorrar. E então assisti à cena mais triste de toda a minha história. Dois estouros e minha mãe caiu. Sua barriga sangrava. Um bípede de olhos pequenos e pele amarela puxou uma faca da cintura e a enfiou no peito de minha mãe. Ela rugiu de dor. O sangue escorreu. Ela gritou para que fugíssemos sem olhar para trás. Fiquei imóvel. Vendo-a morrer, sofrer e chorar. O demônio arrancou seu coração na frente de todos. Após um rugido cheio de desespero, minha mãe não mais se moveu. Vi-a deitada, com os órgãos exposto e a expressão sem vida. Língua pra fora. Olhos abertos. Sangue. Lágrimas. Então, cercaram-me e senti uma picada no pescoço. Parecia um inseto gigante preso na garganta. Perdi os sentidos e deitei para esperar a morte. Nunca mais fui livre. Nunca mais vi ninguém de minha família. Nunca mais voltei pra casa.

Image by cdamundsen

Quando acordei, estava preso em uma gaiola minúscula, em um local escuro e sem ventilação. Assemelhava-se a um terremoto constante. Minha visão e meus sentidos estavam estranhos. Perdi horas e horas tentando entender o que estava acontecendo. Com sede e fome. Puro terror. Não conseguia parar de chorar. Conter meu desespero era impossível. O calor era imenso. Vomitei três vezes no processo. Depois de muito tempo, tudo ficou em silêncio. Escutava as vozes dos meus captores. Nunca senti tanto medo em minha vida. Abriram a porta e me olharam com desdém. Riram. Mostrei os dentes e garras. Não me libertaram. Levaram-me dentro da gaiola para uma jaula maior, ao lado de muitas outras. Vi diversos animais em outros compartimentos e diversas ferramentas que não sabia o que eram. Com uma vara por fora da gaiola, picaram-me novamente. O sono veio. Apaguei.

Assim que acordei pela segunda vez, percebi que estava fora da jaula, mas preso a uma corrente extremamente apertada que machucava meu pescoço. Permitia-me andar alguns metros em uma linha paralela. Olhei a minha volta e enxerguei outras jaulas separadas. Diversos animais em cada uma delas e uma expressão única de tristeza em cada olhar que defrontava. Percebi ali que nada mais seria fácil em minha vida.

Os dias passavam-se lentamente. O enclausuramento dava-me desespero. A corrente me sufocava. Uma vez ao dia deixavam algum tipo de carne podre ou mistura estranha para que me alimentasse. A água, sempre suja e morna. Não sei quanto tempo se passou, mas dei-me conta que sempre que algum bípede se aproximava, os animais ficavam tensos. Principalmente quando era aquele com a face cheia de pelos, alto, gordo e com um olhar malévolo no rosto. O pavor era intenso e sentia a energia de ódio e desespero assim que ele pisava o local. Toda vez que entrava em alguma jaula, os animais ficavam em silêncio. Fazia gestos e era obedecido a contragosto. Movia os braços e os animais pulavam. Movia os dedos e corriam em círculos, ficavam sob duas patas ou faziam outros truques. Era tenebroso, mas ao mesmo tempo curioso assistir. Quando algum animal o contrariava, era advertido com violência. Chutes, socos e principalmente paus e chicotes. Torturavam-no sem piedade. Pavoroso. Chamavam-no de “O Doutrinador”.

Image by Sean MacEntee

Na primeira vez que nos encontramos, eu estava preso. Podia me mover por apenas alguns metros. Vi-o de longe. Entrou na jaula lentamente e balbuciou sons que não podia entender. Gritou, gesticulou e me ameaçou. Mostrei meus dentes, garras e rugi. Sempre que tinha uma reação nervosa, apanhava. Ele era esperto o suficiente para não se aproximar a uma distância na qual pudesse alcança-lo.

Foram dias agonizantes. O estalo do chicote dava-me calafrio. E os espancamentos com paus e ferros faziam me ter dificuldade para saltar ou dormir. Com o tempo aprendi a mudar meu corpo de posição no momento do impacto, para que não atingisse uma área já machucada ou partes nas quais os danos físicos eram maiores. Ganhei muitas dores e cicatrizes até entender que não deveria feri-lo, mas sim respeitá-lo.

Aos poucos, aprendi que cada gesto tinha um significado. Mãos pra cima, mostravam-me que deveria subir em palanques, por exemplo. Um movimento continuo com os braços em direção a frente, indicava que deveria pular sobre arcos. Haviam muitos sinais e, à base de torturas, entendi o que cada um deles queria dizer. Era basicamente um escravo e, quando mostrava-me mais dócil e disposto a cooperar, soltavam minhas correntes e me deixavam “livre”.

Circus Tent by Ryan McCullah

Quando comecei a entender de forma clara todos os sinais, obrigaram-me a fazer os movimentos na frente de outros demônios, em várias noites seguidas, por meses ou anos a fio. Eles gritavam a cada movimento. Eu ficava desesperado, mas sabia que se não obedecesse, depois seria castigado. Junto aos outros animais, rezava para que cada noite terminasse o mais rápido possível. Éramos completamente explorados. Tinha saudade de casa e principalmente de minha família. Perguntava-me se alguns de meus irmão haviam sobrevivido. E principalmente questionava-me porque deveria passar por tudo aquilo. Nunca havia feito nada de mal a nenhum deles. Mas eles me faziam sofrer todos os dias.

Não sei quantas horas, meses ou anos se passaram. Aprendi a viver em torpor. A ser uma marionete. A estar constantemente mudando de local, embora estivesse sempre preso. A comer e beber aquela comida horrível. A estar enclausurado. A esquecer os prazeres da vida. A apanhar o menos possível. A pensar menos e dormir mais para que o tempo passasse logo. Fiz amizade com espécies diferentes da minha. Por entre as grades. Naquele ambiente, não havia presa ou predador, apenas a solidariedade dos outros infelizes como eu. Quando algum deles estava velho demais ou ficava doente, era levado embora. Não sabíamos exatamente o que faziam com eles, mas era o único vislumbre que tínhamos de alguma chance de liberdade.

Certa noite, o galpão foi invadido por diversos bípedes e algo estranho aconteceu. Depois de uma dura e rápida batalha, os humanos que nos torturavam também foram acorrentados, um a um, e presos dentro de jaulas móveis. Nunca mais os vi. Fiquei novamente apavorado, como na época em que fui capturado. Imaginei que passaria por tudo aquilo outra vez. Os novos humanos, desconhecidos, entraram em cada jaula de nossa prisão, abateram (era o que eu pensava) os animais e também os levaram embora. Tentei fugir a todo custo, mas não havia falhas em minha gaiola. Tornei-me violento mais uma vez. Quando viram-me agitado, senti uma picada no torso. Meus movimentos ficaram lentos. Desmaiei.

Chester Zoo by Nigel Swales

Abri os olhos e estava em um local diferente. Tinham cuidado de meus ferimentos. Havia um pedaço de plástico preso à minha orelha esquerda. Estava sob um espaço aberto, com árvores, grama, terra, água e sol. Levantei-me, olhei para todos os lados e desatei a correr. Corri e corri até ficar exausto. Fui em cada canto daquele lugar. Cheirei e toquei cada planta e flor. Afiei minhas garras em todas as árvores que pude encontrar. Eram apenas três. Parei para observar o sol e o céu. Eram lindos. Porém, ainda haviam paredes que não me deixavam prosseguir. Estava preso, mas de uma forma menos desesperadora. Rolei na grama e chorei ao sentir a terra roçar meu corpo. Quanta saudade senti daquela sensação.

Ao longo do tempo, comecei a me entediar e sentir-me solitário novamente. Estava sozinho e minha única companhia eram os filhotes de bípedes e seus pais que apareciam todos os dias para me observar ao longe. Apontavam, faziam barulhos estranhos e se divertiam com minha presença. Fiquei com medo no início. Depois, intrigado. Então, perdi o interesse. Não havia nada de novo. Conhecia cada canto da prisão. Alimentavam-me uma vez ao dia. Durante as noites, tudo ficava em silêncio. De dia, tornava-me o entretenimento daqueles que me odiavam. Não tinha mais vontade de me movimentar ou correr. Tristemente, me conformei que esse seria o meu destino. E, desde então, apenas espero os dias passarem lentamente junto à minha eterna depressão.

Enfim, agora estou aqui, olhando diretamente nos seus olhos, tentando te mostrar a tristeza que é, e foi, minha vida. Por trás dessas grades, espero que você entenda o motivo de minhas angústias e o porquê tudo desde então tem sido apenas um borrão melancólico, tenebroso e solitário. Veja em meu olhos a infelicidade que assola o meu coração. Caso tenha a sensibilidade de perceber o mal que fizeram a mim e a meus semelhantes, mostre a verdade aos outros humanos, para que em algum momento deixem de nos perseguir, destruir e escravizar. Não acabem com nossas vidas. Ainda há tempo para que todos nós consigamos viver em harmonia. Os animais, a natureza e vocês, demônios.